Perda de uma chance – Responsabilidade Civil do Médico

Em voto proferido por mim, tive a oportunidade de tecer algumas considerações sobre a teoria denominada “perda de uma chance” na seara do erro médico. Tema discutido mutio na doutrina mas que vem sendo citado de forma reiterada na jurisprudência mormento quando o assunto tratado se volta ao atendimento médico, e tão bem sabemos o quanto as deficiências na área de saúde têm sido divulgadas na mídia.

Segue, portanto, trecho do voto para que o leitor tenha uma noção sobre a teoria que teve origem no direito francês.

Trata-se de um caso em que o choque séptico causou a morte da paciente.

“(…) De tudo que foi exposto pode-se concluir que a morte da paciente decorreu da ausência de pronto atendimento e de cuidados indispensáveis no ato pós-cirúrgico, o que foi demonstrado pela análise global dos elementos dos autos, não havendo que se falar em ausência de provas, pelo que restam afastadas tais alegações dos réus.  Ademais, e ainda que não seja a causa da morte, observou-se negligência quanto aos exames pré-operatórios, denotam-se desídia.

O elemento culpa, na forma dos art. 186 e 927 do CCB[1], no que tange ao médico está presente, qual seja, a omissão por não atender melhor a paciente diante dos fatos que detinha conhecimento e em face de ocorrer choque séptico = (a) antibióticos antes da primeira cirurgia; (b) quadro grave após a segunda intervenção cirúrgica; (c) permanecer na maternidade ou averiguar a presença de plantonista após o segundo ato cirúrgico; e (d) encaminhá-la para hospital com UTI.

Ainda, o presente caso pode basear-se na teoria da perda de uma chance (perte d’une chance).

A teoria da perda de uma chance na seara médica transparece quando na avaliação judicial de um atendimento médico-hospitalar, e ainda que não se perceba que com toda certeza que um paciente venha a se recuperar de uma determinada doença, seja possível se admitir que o paciente teve a perda de uma chance de se curar integralmente, ou até mesmo parcialmente, da sua doença, ou mesmo evoluiu para óbito, por não ter o médico empregado todos os meios de investigação e terapêutica à sua disposição para o tratamento da doença.

Esclarece ainda a doutrina[2], na lição do advogado e médico gaúcho, Neri Tadeu Camara Souza, que a culpa, no caso, se caracterizaria pelo fato de não terem sido dadas ao paciente todas as “chances” (investigação e tratamento, inclusive especializados) de se recuperar de sua moléstia. Sobre esta teoria o jurista Neri Souza, faz referência ao ensinamento de Fernanda Schaefer:

“É uma teoria desenvolvida na França que caracteriza a perda de uma chance como um tipo especial de dano. Surge quando pela intervenção médica o paciente perde a possibilidade de se curar ou de se ver livre de determinada enfermidade.  Admite-se, porém, a culpa do médico sempre que sua ação ou omissão comprometa as chances de vida ou de integridade do paciente. (…) Esta teoria afirma não ser necessário demonstrar o nexo de causalidade entre a culpa e o dano, pois a culpa já estaria configurada no simples fato de não ter dado a chance ao paciente.” [3]  (RESPONSABILIDADE CIVIL DO MÉDICO & ERRO DE DIAGNÓSTICO. Curitiba: Juruá Editora, 2006, p.75-76).

No presente caso, houve a perda de uma chance séria e real[4], posto que diante de todo o quadro apresentado, a atenção imediata dada à paciente após a segunda cirurgia (com encaminhando à UTI), seria o ideal para a mudança do quadro de choque séptico.

Ainda que discutida na doutrina, a teoria em apreço é também nominada como perda de uma chance de sobrevivência ou de cura, e como comenta o Desembargador Miguel Kfouri [5],“admite-se que a culpa do médico comprometeu as chances de vida e a integridade do paciente.”  E mais, o ilustre paranaense comenta o seguinte: “Pouco importa que o juiz não esteja convencido de que a culpa causou o dano. É suficiente uma dúvida. Os tribunais podem admitir a relação de causalidade entre culpa e dano, pois que a culpa é precisamente não ter dado todas as oportunidades (‘chances’) ao doente. Milita uma presunção de culpa contra o médico.”

Narra a doutrina que ‘a possibilidade de se tomar uma conduta diferente no manejo de determinada situação de doença em um dado paciente fosse adotada por seu médico poderia ter permitido que o seu quadro de saúde tivesse uma evolução diferente, haveria esta possibilidade, para melhor, e com isto podendo vir a ser evitado o dano que este porventura tenha sofrido, ou mesmo poderia ter impedido uma evolução para o seu óbito, é o núcleo central da teoria da perda de uma chance no que se refere à sua aplicação pelos julgadores em casos de avaliação’.

E essa chance perdida deve ter a capacidade de poder comprometer a integridade física do paciente, e, inclusive, necessitando ter significância no mundo real, como bem preleciona José Carlos Maldonado de Carvalho: “A culpa, decorre, precisamente, de não terem sido dadas todas as oportunidades ao paciente. Presume-se, desta forma a culpa pela perda de uma chance de resultado favorável no tratamento. Entretanto, é necessário que a ‘chance perdue’ seja real e séria, tendo-se em conta, também, na avaliação dos danos, a álea susceptível de comprometer tal chance. Deve-se ter em conta, assim, não apenas a existência do fator álea, mas também o grau dessa álea, ou seja, leva-se em consideração, quanto à prova, o caráter atual ou iminente da chance de que o consumidor alega ter sido privado.” (IATROGENIA E ERRO MÉDICO. RJ. Editora Lúmen Juris, 2005, págs.122/123).

Por tudo dito acima, e no tópico anterior, convence-se que está caracterizada a responsabilidade civil do médico em apreço.” (…)

[1] Código Civil brasileiro, trata da responsabilidade civil subjetiva, através do comando de seus artigos 186, verbis: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito; e 927, caput, verbis: “Aquele que por ato ilícito (arts. 186 e 187) causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.”.

[2] Erro médico e perda de uma chance. Neri Tadeu Camara Souza. http://jusvi.com/artigos/

[3] “A teoria da perda de uma chance é uma evolução jurisprudencial francesa e tem o objetivo de aliviar a carga probatória da causalidade, a cargo da vítima, entre a culpa e o dano.(Castro, João Monteiro de. RESPONSABILIDADE CIVIL DO MÉDICO. São Paulo: Editora Método, 2005, p.191).

[4] Sobre as chances sérias e reais, alertou Judith Martins Costa: “Tais critérios partem da constatação da existência de “chances sérias e reais”, pois a teoria da perda de uma chance encontra o seu limite no caráter de certeza que deve apresentar o dano reparável. Por essa razão, a chance perdida deve representar “muito mais que uma simples esperança subjetiva”, cabendo ao réu a sua prova e ao juiz o dever de averiguar quão foi efetivamente perdida a chance com base na ciência estatística, recorrendo ao auxílio de perícia técnica. Além do mais, a sua quantificação segue uma regra fundamental – obedecida também nas espécies de dano moral pela perte d’une chance -, qual seja: a reparação da chance perdida pela vítima, não devendo ser igualada à vantagem em que teria resultado esta chance, caso ela tivesse se realizado, pois nunca a chance esperada é igual a certeza realizada.” (APRESENTAÇÃO. In: Rafael Peteffi da Silva. RESPONSABILIDADE CIVIL PELA PERDA DE UMA CHANCE. São Paulo: Editora Atlas, 2007, p.XX).  

[5] RESPONSABILIDADE CIVIL DO MÉDICO. 3. ed., São Paulo: Editora RT, 1998, pág. 53.

EXTRAÍDO DO VOTO PROFERIDO NA AP. CIVEL  845.022-4, TJPR. Rel. DENISE ANTUNES, Juíza de Direito Subst. em 2o. Grau.

Sobre deniseantunes

Mestranda em Direito - UEPG. Juíza de Direito aposentada. Conciliadora do CEJUSC - TJPR. Especialista em Direitos Humanos e Questão Social pela PUC/PR.
Esse post foi publicado em Uncategorized. Bookmark o link permanente.

Deixe um comentário